Geovanas, Jocileides e a burocracia – Angela Delgado

Filha Casada, à procura de uma babá e com problemas em seu telefone, colocou o meu no anúncio em um jornal.

Foram quase 200 telefonemas em apenas dois dias, em que houve de tudo:  chamadas a cobrar; ligações em que fui tratada por gatinha; minha linda, até uma candidata que falava francês! Esta assustou-me, fazendo-me suspeitar que fizesse parte de uma rede internacional de sequestradores. Não. Apenas trabalhara quatro anos na França, tomando conta de uma criança. Ah, bom. Mas temi que seu perfil de governanta dos tempos passados, tê-la-ia encarecido sobremaneira.

Eu não podia me concentrar no computador ou fazer café, e muito menos tomá-lo.

As Adrianas, Alines, Anízias, Catarinas, Geovanas, Jocileides, Josélias, Luísas, Marinas, Marias, Osanas, Roses, Selmas, não me deixaram sentir solidão.

Apresentaram-se, prometeram voltar, mas não o fizeram, talvez amedrontadas pelos Três Mosqueteiros e a Princesa, de brinde…

Nesse ínterim, Filha Antropóloga passara no concurso para o Ministério da Educação e precisava apresentar seus títulos que se resumiam a um, já que ainda não havia concluído o Mestrado.

Estando ela em outra cidade, coube-me telefonar para requerer a declaração atestando que ela trabalhara, durante dois anos, como professora da Fundação, o que lhe adicionaria oito pontos em seu resultado. Declaração para amanhã? Impossível. Terei que entregar mais de quinhentas.

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Mas, mãe, já a pedi há meses! Deve estar pronta.

Às oito da manhã, estaciono no estacionamento ainda vazio, que bom, só que declarações eram entregues a partir das dez horas.

Volto às dez. Em que mês sua filha fez o pedido? Vocês não arquivam por ordem alfabética? Não, pelo mês do pedido.

Não tenho como falar com a Filha Requerente e preciso do papel para ontem. Por sorte, a funcionária, em menos de dez minutos, achara a declaração.

Saí exultante. Agora restava apenas reconhecer firma, tirar xerox e enviá-la pelos Correios. No cartório, algum corretor, à espera de sua cliente que não chegava, trocara sua senha pela minha; ganhei alguns minutos em minha corrida contra o tempo. Que menina sortuda essa Filha Antropóloga. Mas aí Deus achou que já havia me concedido muito. A máquina de xerox não estava funcionando e o Sedex não poderia entregar o envelope no dia seguinte, pois era feriado. Ao lado, uma loja transportadora de cargas expressas o faria, porém mediante quantia tão exorbitante, que retruquei: Por esse preço, pego o avião e levo pessoalmente.

Solução: Filha Antropóloga, via Fax, me passaria uma Procuração.

Só não entendi por que para obter a declaração, não me fora requisitada a carteira de identidade, no entanto para entregá-la, além da carteira de identidade, era preciso uma procuração.

E de curiosidade em curiosidade, finalizo com o fato de minha “maturidade” ter achado um ótimo meio de saber onde coloquei certos objetos. Por exemplo, um saquinho bem pequeno de plástico, que achei ter utilidade futura, foi guardado na letra “p” da pasta sanfonada de documentos, e me divirto comigo mesma, constatando a hilaridade da faixa etária. Antevejo o que ainda irá parar nessa pasta! Na letra “c” o celular e as chaves; os óculos no “o” ou “e” de eureka ?!

 

O caso da senhora Santiago – Gustavo Bernardo Krause

Bom-dia, minha senhora. Dormiu bem? Trataram-na bem? Com certeza que sim. Nosso estabelecimento é famoso pelo acolhimento que dispensa a seus hóspedes. Diga-me, por favor, seus aposentos estão a seu gosto? Não se preocupe, providenciaremos roupas de cama mais condizentes com a sua pessoa. Algo mais? Sinto muito, mas infelizmente não podemos retirar as grades da janela. Quando voltar a seus aposentos observe com atenção, por favor, esticando só um pouco o pescoço, e verá que todas as janelas de todos os aposentos têm as mesmas grades. Não seria estético retirarmos as grades apenas da sua janela, não lhe parece? Os outros hóspedes decerto não apreciariam a exceção. A cor da janela também a deprime? Eis algo que se me mostra improvável, senhora Santiago: a cor verde foi cuidadosamente escolhida para as janelas por lembrar a natureza, portanto por suas óbvias características calmantes. Essa cor, ao contrário da cor amarela, nesse caso a senhora teria toda a razão, não é de nenhuma maneira depressiva. Além do mais, retornamos ao problema anterior: se todas as janelas são verdes então não podemos modificar apenas uma, sob pena de desobedecermos à estética do prédio e assim desagradarmos a todos os demais hóspedes, digamos assim. Sim, estética é algo a que se pode desobedecer e a que na verdade não se deve desobedecer, sob pena de perdermos as referências de harmonia que nos ajudam a trabalhar e a viver. Tudo isso por causa da cor verde e das grades, estas completam aquela e emprestam a segurança, inclusive visual, de que os senhores e as senhoras tanto precisam. Ah, a senhora quer voltar para casa, onde não há grades nem janelas verdes? Compreendo. É natural. É bastante natural, de fato. Prometo, falaremos sobre o seu desejo mais à frente. Isso, sobre sua volta para casa. Hoje mesmo, não se preocupe. Por ora, preciso apenas confirmar algumas informações suas para preencher a nossa ficha. Nome? Capitolina Santiago, perfeitamente. Claro que eu já sabia o seu nome, minha cara. Todavia, é necessário confirmá-lo, quer para que não pairem dúvidas, quer para que eu a escute falar sobre a senhora mesma. Sim, isso é absolutamente fundamental. Sua idade, por favor? Sei que não é pergunta que se faça a uma dama, mas os funcionários que elaboraram a ficha, tempos atrás, não tiveram a elegância de abrir essa exceção, que se há de fazer. Idade, por favor? Não diz? Recusa-se a dizê-la? Tudo bem, não é um grande problema: por ora posso deixar esse campo em branco. Nome da mãe? Dona Fortunata, interessante. Expressivo. Pai? Senhor Pádua, confere. Filhos? Ah, um menino, ótimo. Seu nome, por favor? Luís, foi o que disse? Mas não é Ezequiel? Se eu sei, por que pergunto. Já lhe disse, porque preciso perguntar, precisamos ambos, a senhora e eu, ter certeza do que falamos e sobre o que falamos. Perfeito, Ezequiel. Moradia, por favor?… Muito obrigado. Por enquanto, é suficiente. Podemos voltar à sua pergunta anterior. Qual pergunta? Ora, se a senhora pode voltar à sua casa ainda hoje, já não o deseja mais? Ah, não era uma pergunta, a senhora quer e vai voltar para casa ainda hoje. Pois é, mas não pode, não assim, logo logo. Isso mesmo, não pode. Porque o senhor Bento Santiago, seu marido, certo?, nos procurou para nos solicitar que a internássemos no nosso estabelecimento. Agora a senhora entendeu, de fato não se encontra hospedada em um hotel, mas sim internada em um nosocômio. Exatamente, um nosocômio, uma espécie de hospital destinado ao tratamento de pessoas, digamos, mentalmente perturbadas. A senhora não se sente mentalmente perturbada, folgo em sabê-lo. No entanto, uma pessoa mentalmente perturbada não é a mais indicada para julgar a si mesma, se o está ou não. Como os bêbados, que sempre dizem que não estão bêbados. Sei perfeitamente, a senhora não se encontra alcoolizada, não é essa a nossa questão. Falamos de determinado tipo de doença mental: a senhora sente que está bem, perfeito, mas esse sentimento faz parte dos sintomas da sua doença, é muito comum que o doente negue a sua doença. Que bom que perguntou qual é a sua doença, assim nós todos evoluímos na direção da cura que desejamos, sem dúvida. Provisoriamente, já que ainda precisamos proceder a alguns exames, testes e provas, eu diria que a sua doença é uma manifestação secundária, nem por isso menos elaborada, de Confiance Affective Peu Fiable. Não conhece a expressão nem a língua, compreendo. O sr. Pádua não pôde lhe pagar cursos de francês, ora, isso não é vergonha nenhuma. Eu traduzo a expressão para a senhora: digamos que a sua doença é uma manifestação secundária de Confiança Afetiva Não-Confiável. O que isso quer dizer, afinal? Bem, retraduzindo os termos técnicos para uma linguagem que compreenda com mais facilidade, eles querem dizer que a senhora é afetiva e compulsivamente não-confiável, isto é, ao mesmo tempo que atrai as pessoas não lhes desperta a mínima confiança necessária para uma convivência saudável e civilizada. Como posso dizer uma barbaridade dessas sem conhecê-la? Primeiro, não é uma barbaridade, mas sim uma doença, como lhe falei. Segundo, na verdade eu a conheço bem, ou melhor, conheço bastante bem casos crônicos como o seu. As particularidades do seu caso em particular me foram transmitidas pelo seu marido de maneira extremamente detalhada, quando a trouxe aqui. Depois que a enfermeira Leonela a levou para o seu quarto, ele fez questão de me entregar um dossiê volumoso a seu respeito, dossiê este a que ele curiosamente não deu o seu nome ou apelido, como seria de se esperar, mas sim o próprio apelido pelo qual ficou conhecido: Dom Casmurro. Trata-se de um apelido muito revelador, temos de convir. Naturalmente, na hora me lembrei de outro Dom, aquele que enlouqueceu de tanta leitura de romances de cavalaria e saiu pelo mundo montado num pangaré com uma bacia de barbeiro na cabeça. Um caso clássico, citado em todos os anais da ciência, Juntando esse título que ele deu para o dossiê com a circunstância inusitada de tê-lo escrito como um romance, não pude deixar de considerá-lo um outro caso interessantíssimo. Poderíamos chamá-lo, elaborando quiçá uma nova teoria a respeito, de Fobia de Ficção. A Fobia de Ficção se associa, reconhecemo-la, a uma insegurança patológica específica, fazendo com que se combine a sua própria doença, sra. Capitolina, com a doença do seu marido, e de uma maneira esteticamente muito interessante, também devo reconhecer. A senhora sabia que no seu romance, digo, no seu dossiê, o sr. Santiago é capaz de levantar tantos argumentos contra a senhora, isto é, a favor de que a senhora o tenha traído com o seu melhor amigo, quanto argumentos a favor da senhora, isto é, contra a hipótese de que o tenha traído com esse melhor amigo ou com qualquer outro homem? Impressionante, não acha? Não? E quer falar com ele para desfazer de uma vez por todas o que chama de mal-entendido? Creio que não será possível, pelo menos ainda não. Por que? Ora, porque eu não podia deixá-lo à solta na cidade, Eu o internei imediatamente depois da senhora, ele nem chegou a ultrapassar o portal. Preciso estudar os dois casos cuidadosamente, eles são tão significativos que me ajudarão a dar mais alguns passos importantes no domínio do oceano da loucura. É isso, o seu marido também se encontra internado aqui conosco, em outra ala. Curioso é que ele tenha igualmente reclamado das grades e da cor verde nas janelas, o que me empresta mais uma conexão que pode ser importante. Fora o fato de vocês dois – perdão pela intimidade momentânea, mas o estudo dos seus casos me torna como que um pouco íntimo tanto de você quanto de seu marido, se me permite -, portanto, fora o fato de vocês dois serem muito ligados um ao outro desde muito jovens, o que seria uma outra motivação para explicar as preocupações semelhantes, devemos acrescentar a reação negativa ao ambiente como um outro sintoma secundário, e novamente, nem por isso menos importante. A relação interna entre vocês me leva a formular uma espécie de diagnóstico duplo e complementar deveras interessante. Por que é interessante? Bem, porque sugere que o seu casamento com o seu marido seria não apenas um casamento entre duas pessoas, entre duas personalidades, entre duas almas, digamos assim, mas igualmente um casamento entre duas doenças que desse modo se reforçam uma à outra em uma espiral contínua e viciosa muito difícil de interromper. Não, não estou dizendo que cada um de vocês é em si uma doença, o que estou dizendo é que foram as duas doenças, a sua e a do seu marido, que os aproximaram e os casaram e, depois, os separaram, percebe? Não percebe? Compreendo, a teoria não é simples sequer para os meus ilustres colegas, que dirá para leigos no assunto, mas posso lhe assegurar que, apesar da sua ousadia e do seu ineditismo, ela se encontra muito bem, na verdade muitíssimo bem fundamentada. Quem gosta de falar assim? Assim como? Ah, cheio de superlativos: o sr.José Dias, perfeitamente, li sobre ele no dossiê-romance. Outro caso interessantíssimo, talvez o chame aqui um dia desses. Mas por ora nos concentremos em você, minha cara, e no seu ilustre marido e autor. Não, ele não é necessariamente o seu autor, mas sim autor do dossiê-romance sobre você.Todavia, talvez possamos pensá-lo, em algum nível, como seu autor sim: como se a manifestação enviesada do ciúme masculino fortalecesse a doença feminina em questão, a saber, a nossa conhecida Confiance Affective Peu Fiable. Que seja. Mas voltemos à minha teoria. O casal que Bento e Capitolina Santiago ainda formam, mesmo que no momento em aposentos separados, se tornará o corolário dessa teoria, fornecendo-me a demonstração que faltava no brilhante edifício que, modéstia à parte,

venho construindo pouco a pouco. Compreendo, compreendo, você não entende de edifícios e teorias, logo também não entende de metáforas. Como? Prefere que eu volte a tratá-la por senhora? Perfeitamente, seu desejo é uma ordem, mas somente aqueles a que eu possa atender, como o de tratá-la mais cerimoniosamente. Dizia então que a senhora não entende de edifícios e teorias, logo também não entende de metáforas. Todavia, a despeito dessa dificuldade natural a seu sexo, sempre me sinto na obrigação moral e científica de explicar a meus pacientes e demais hóspedes do estabelecimento todos os aspectos envolvidos no tratamento. Trata-se de uma atitude pedagógica que, em algum nível subterrâneo, talvez a ajude a se curar mais à frente, além de auxiliar a mim mesmo a organizar os meus procedimentos e, portanto, o meu pensamento. Ah sim, a senhora quer saber o que acho não do seu caso clínico mas sim da acusação do seu marido, a saber, que a senhora o teria traído com o sr.Ezequiel. Calma, eu não quis dizer que o seu marido disse que a senhora o teria traído com o seu próprio filho, nesse caso teríamos de chamar um outro tipo de profissional, que aliás pouco me agrada. O que eu quis dizer foi que o seu marido disse que a senhora o teria traído com o seu melhor amigo, o sr.Ezequiel Escobar. Ah, bom. Mesmo assim não está bom, compreendo. Mas respondo à sua interrogação. Deixando à parte, para consideração posterior, o fato de a senhora não afirmar explicitamente, pelo menos até o presente momento, que não traiu de modo algum o seu marido, nem com o sr.Ezequiel Escobar nem com ninguém mais, minha intuição e minha experiência me dizem que a senhora não deve ter traído o seu marido. Então por que está aqui?!, a senhora me pergunta com a devida ênfase, percebi. Eu lhe respondo que não me cabe julgá-la e muito menos condená-la por infidelidade e adultério, tais atos não competem à medicina que professo, mas sim cuidar adequadamente da sua doença e, se possível, curá-la. E se não for possível?!, eu escutei bem, não precisa gritar, por favor, se controle. Não me agradaria chamar a srta.Leonela antes do término dessa nossa sessão. Controlou-se? Muito bom, esse é um bom sinal. Afirmo-lhe então que é possível curá-la e que sou o profissional mais indicado para fazê-lo, não se preocupe, a expressão “se possível” é apenas modéstia científica preventiva. Qual é a sua doença, então? Já lhe disse de maneira sumária, mas passo a lhe explicar um pouco mais detalhadamente, me agrada bastante o seu interesse. Bem, continuando a relevar o fato, para  aquela consideração posterior, de a senhora persistir não afirmando explicitamente que não traiu de modo algum o sr.Bento Santiago, mesmo depois de eu lhe fazer notar isso, passo a comentar a sua doença e o seu caso particular. Contudo, para melhor definir o conteúdo da doença precisamos definir o seu continente, isto é, a pessoa que porta a doença. Então, precisamos perguntar: quem é a senhora? Quem é Capitolina Santiago? Em última instância, mais íntima e mais próxima: quem é Capitu? Vejamos. Há uma expressão, no dossiê-romance do seu marido, que tenta descrevê-la: “olhos de ressaca”. A expressão é precedida daquela outra, proferida pelo sr.José Dias: “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Não conhecia esta última? Interessante. Ambas as expressões são fortes, mas a segunda, que parece ter sido pensada primeiro, é um pouco ofensiva, reconheço, enquanto a primeira constitui-se a partir de uma metáfora muito bonita que também me serve. A partir dos seus olhos, as portas da alma!, conforme diziam os antigos, olhos cuja cor vejo agora que oscilam do verde-claro ao azul-escuro como se seguindo a luminosidade do ambiente, a partir desses olhos o sr.Santiago pretendeu que eles lembram e sugerem a ressaca no mar, a saber, a revolta das ondas movidas pela maré e por ventos muito fortes. Interessante notar, de passagem – sim, gosto da palavra “interessante” – mas, interessante notar que o amigo dos dois, supostamente seu amante segundo o sr.Bento, tenha justamente morrido afogado no mar e num dia de ressaca, apesar de nadar muito bem. Bem, normalmente são os melhores nadadores aqueles que morrem afogados, porque lhes falta o medo que garante a sobrevivência cotidiana. Ou seu amante, digo, o sr.Escobar teria preferido morrer no mar, afogado que já se encontrava na ressaca dos olhos de uma certa senhora carioca? Oh, desculpe-me a menção desagradável, compreendo que o estimava, de um jeito ou de outro. Naturalmente que compreendo, a minha função é compreender. Tome, use o meu lenço. Por nada, não se preocupe. Voltemos então a seus olhos de ressaca, neste momento ainda salgados e molhados como as águas da baía de Guanabara, me perdoe a licença poética. A senhora gosta de licenças poéticas? Que bom. Pois são esses seus olhos que mostram a senhora como uma força da natureza, indubitavelmente bela mas igualmente inconstante e, portanto, perigosa. Sim, eu disse perigosa. Seu marido parecia vê-la de ambas as maneiras, sintetizando sua percepção na bela imagem dos olhos de ressaca. Creio que ele se encontrava próximo da verdade, mas não atinou com a verdade mesma. Não creio, tanto pelo dossiê-romance quanto pela minha observação in loco e in pectore, que a senhora mesma seja uma ressaca ambulante, prestes a invadir e afogar as terras e as pessoas. Não. Não me parece que a senhora seja mesmo inconstante. Aliás, se o seu problema fosse esse, o tratamento seria muito fácil e muito mais curto. Não. A senhora é na verdade muito calma e controlada; o que faz é provocar nos outros, jamais em si mesma, as mais terríveis ressacas, afogando as pessoas que a cercam e a amam em incerteza, insegurança e ansiedade, em suma: em desespero. Por isso o sr.Escobar, por conta de sua própria doença em combinação com a da senhora, talvez tenha precisado se afogar em uma ressaca de verdade. Oh, desculpe-me novamente, mas simplesmente não posso censurar as minhas próprias palavras em benefício da precisão do diagnóstico, espero que me entenda. Aqui tem outro lenço pode usá-lo. Dizia eu que a senhora provoca ressacas nos que a cercam. Claro que não se trata apenas da cor dos seus olhos. Ela tão somente espelha e expressa o seu interior, paradoxalmente intenso e plácido ao mesmo tempo. É essa intensidade da senhora e do seu desejo, não importa o objeto desse desejo, que, associada a uma placidez interna impressionante, desequilibra as pessoas à sua volta e em particular os homens, como que devolvendo-nos à nossa lama primitiva. Eu disse nossa? A senhora quer dizer, como se me incluísse entre os homens que você, perdão, que a senhora perturba? Deve ter sido apenas um lapso: a ciência me protege e à senhora, os meus interesses são e só podem ser científicos. Voltemos a seus olhos, mas para sair deles. Há obviamente aspectos psicológicos fundamentais na constituição da sua doença, mas desejo comentar antes os aspectos propriamente físicos…

Talvez por ser tão bela, o sr.Machado de Assis tenha desejado tê-la construído ele mesmo como a personagem feminina mais forte da literatura brasileira… Como? Quem é esse sr. Machado de Assis? Ora, apenas um funcionário público que chegou aqui na Casa Verde contando que escrevera uma história que explicava o amor e todas as suas sombras, com dois personagens chamados Bentinho e Capitu. A coincidência é impressionante, admito, o que só torna o caso de vocês três extremamente interessante. Digo o caso de vocês três porque, antes mesmo do sr.Bento e da senhora, eu já havia internado o sr.Machado de Assis, considerando-o acometido de uma variante mais sofisticada ainda da Fobia de Ficção. Não contente em afirmar que os inventara, à senhora, a seu marido e ao sr.Escobar, que Deus o tenha, ainda afirmou que inventou a mim mesmo, a mim, o dr.Simão Bacamarte que tem à sua frente, e que tinha vindo aqui apenas para tirar uns dedos de prosa com sua própria criação, imagine só. Passarei a me dedicar agora a essa combinação impressionante de doenças mentais, a partir da qual, sem sombra de dúvida, terei todas as condições de compreender e curar a loucura humana…

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A morte como consolo – Martha Medeiros

Assim como qualquer mortal, eu também esquento a cabeça com questões de difícil praticidade. Teorizar é moleza, mas como agir do mesmo modo que essas supermulheres que a gente vê nas revistas e jornais, sempre bem resolvidas? Você ache que eu sei? Sei nada.
Também me desgasto com assuntos mundanos, aqueles que nos atormentam dia e noite: sinto ciúmes, me constranjo ao negar convites, às vezes acho que sou severa demais com minhas filhas, às vezes severa de menos, não consigo ser tão solícita quanto gostaria, me sinto desatualizada em relação a tanta coisa, não sei direito a direção para a qual conduzir minha vida, enfim, coisinhas que nos roubam algumas horas preciosas de sono.
Como não faço terapia e não posso perder nem um minuto precioso de sono, já que normalmente durmo pouco, resolvi procurar um método pessoal para relativizar meus pequenos grilos cotidianos. E encontrei um que pode parecer macabro, mas está funcionando. Quando estou muito preocupada com alguma coisa, penso: eu vou morrer.
Óbvio que vou morrer, todo mundo sabe que vai morrer um dia, mas a gente evita pensar nesse assunto desagradável. No entanto, tenho pensado na morte não como uma tragédia, mas como um recurso para desencanar dos problemas, e então a morte se torna um ulalá, um paliativo: daqui a quarenta anos, mais ou menos, eu não vou estar mais aqui. O que são quarenta anos? Um flash. Todas as minhas preocupações desaparecerão. Nada do que sinto ou penso permanecerá, ao menos para mim mesmo – o que as pessoas lembrarem de mim será de responsabilidade delas. Eu vou evaporar. Sumir. Escafeder-me. Então pra que me preocupar com bobagem?
Diante da morte, tudo é bobagem. Recapitulando os exemplos dados no segundo paragrafo: ciúmes? Ouvi bem: ciúmes? De quem, para quê, se todos irão pra baixo da terra e ninguém sobreviverá para cantar vitória? Aproveite os momentos que você tem hoje – hoje! – para desfrutar seus prazeres e não pense em perdas e ganhos, isso não existe, é pura ilusão.
Os filhos nos amam, mas fatalmente reclamarão de nós um dia, não importa o quão bacana fomos com eles. Ser 100% solícita e coisa para Madre Teresa. Atualização pode ser importante para o trabalho, mas nem sempre par nosso bem- estar. E, finalmente, seja qual for a direção que você der à sua vida, o que importa é que ela seja satisfatória hoje (repito a palavra mágica – hoje!) porque daqui a pouco você e suas preocupações virarão poeira. Até Ivete Sangalo vai virar poeira.
] Importantíssimo (me descuidei, deveria ter colocado esse último parágrafo lá no início, mas já que vou morrer, dane-se): se você tem menos de quarenta anos, desconsidere todas as linhas dessa crônica. Leve seu nascimento a sério. Antes dos quarenta, ninguém vai morrer. Essa é a ordem natural do pensamento humano. Pague seus impostos, preocupe-se com a direção que sua vida está tomando, morra de ciúmes, dê-se o direito de todas as cenas passionais que incrementam seu script: mão se entregue ao fatalismo. Honre o primeiro ato dessa encenação chamada vida.
Porém, depois dos quarenta, apenas divirta-se e não perca tempo se preocupando com bobagens. Vai dar em nada.

De volta ao calçadão ? – João Ubaldo Ribeiro

Espero que este domingo esteja um dia meteorologicamente irretocável, um sol quase de verão amenizado por ares outonais. Sempre espero mais ou menos isso aliás, mas é frequente que não me dê bem na previsão e o domingo só seja propício para os espíritos melancólicos, que sentem estranho prazer em contemplar sozinhos a paisagem penumbrosa e úmida, a chuva escorrendo pela vidraça e ocultando o horizonte, talvez uns versos de Lupicínio Rodrigues insistindo em ser cantados no fundo da mente, lembranças enevoadas e frias enxameando em torno da cabeça. Porque os melancólicos também são filhos de Deus, dias assim não deixam de ter seu valor e serventia, sublinhando a sutil sabedoria da frase de meu amido Benebê, que às vezes a repete em tertúlias no bar de Espanha, em Itaparica. “O mundo é perfêtcho”, diz ele, em seu implacável sotaque do Recôncavo, e ninguém ousa contestá-lo, inclusive eu, naturalmente.
Sim, o mundo é perfeito, ou tem sido até começar a acabar (vai ver que Benebê vê nisso outra mostra de sua perfeição, porque ele vai acabar para nós, mas não para ele mesmo ou para as baratas), mas peço vênia aos que hoje estão inclinados ao quebranto, ao banzo, a pensamentos macambúzios e diversos outros estados de espírito em que às vezes misteriosamente nos comprazemos, para preferir o sol e a claridade brilhante que para a maioria é a melhor forma de a manhã de domingo apresentar-se.
Um belo domingo de sol com tudo a que tem direito e por que adiar a temível decisão, que precisará ser tomada mais cedo ou mais tarde?
Sabem os abnegados que me leem, com constância que a malha médica me pegou firme outra vez, desta vez com pinta de quem quer botar tudo no papel passado, ou seja, a malha médica quer casar comigo, ou entrar numa coabitação mais ou menos intensa. Há uns exames programados que ainda não fiz e que, só em olhar para as requisições, me congelam o sangue. Um aqui, deve ser coisa boba, leva cerca de quatro horas. Não sei bem o que me quer dizer minha imbatível equipe de esculápios, mas temo que não façam uma ideia lá muito favorável de minhas condições físicas ou mentais, ou ambas as coisas. Sofro pesadelos em que imagino todos os 11 (ainda não contei, mas acho que já dá um time de futebol, com sobras para um banquinho de reservas) fazendo o comentário que eles fazem entre si, quando deparam um estado de saúde no mínimo estapafúrdio: “É um belo caso”, dizem eles, entre risinhos sádicos. “Belo caso, belo caso!”
Nenhum deles ainda me disse, mas eu sei que sou um belo caso, daí os exames. E daí a inevitável sentença: calçadão. Não serve esteira, porque eu enrolo, não serve bicicleta estacionária, porque e me recuso a livrar-me da minha, que deverá fossilizar-se em breve e os arqueólogos não me perdoariam se a jogasse no lixo. E porque se convencionou, ignoro eu a razão, que andar no calçadão é fantástico e nada pode ser comparado ao calçadão e quem não gosta do calçadão é porque deve ter uma doença rara e que, depois de andar no calçadão, a sensação de euforia e bem-estar é indescritível.
Claro, não espalhem, mas sou um anormal. Outro dia, em palestra com o lépido calçadonista Zuenir Ventura, ele dissertou doutamente sobre endorfinas e ficou pasmo quando eu disse que ignorava os benefícios trazidos por elas, pois que, depois de andar no calçadão, só me vinha uma sensação de alívio e cumprimento de penas no Purgatório, acompanhada do desejo intenso de que uma ressaca cobrisse inteiramente o calçadão no dia seguinte. Ele ficou penalizadíssimo e chamou alguns amigos circunstantes para me mostrar, como quem mostra um ornitorrinco num zoológico. Caso raríssimo de – como diria? – anendorfinia. Fiquei com tanta vergonha de minha doença que perguntei se não dava para injetar endorfinas na veia e ele prometeu verificar para mim.
A malha médica, entretanto, não se contenta com isso, exige o calçadão. Usei todos os argumentos possíveis, notadamente, o que sei que é politicamente muito incorreto, pois abomino o calçadão, embora com todo o respeito pelos seus cultores. Mas ninguém parece a favor da liberdade religiosa e assim sou obrigado, quer queira quer não, a andar no calçadão. Dois ou três membros da malha médica ainda sugeriram que eu me matriculasse numa academia, mas também já tenho essa experiência. Na minha idade, dá muito trabalho adaptar-se a uma subcultura de elevada complexidade como a das academias, onde todo mundo me acha chato e eu acho todo mundo chato.
Ainda não me dei por vencido intimamente, mas já capitulei. Desejei um domingo de sol porque planejava começar hoje, sério mesmo. Comprei um calção novo, sapatos metidos a besta e obviamente superfaturados conforme os costumes nacionais, até uma camisa especial – não sei por que, mas o balconista disse que era especial e eu acredito em tudo o que me dizem. Achei o chapéu e os óculos escuros, está tudo pronto. Mas agora senti que não será hoje. Sempre em perfeita sintonia com a realidade nacional, vou começar de uma forma que, pelo menos simbolicamente represente algo importante para mim e para o Brasil. Já escolhi a data: no dia em que o espetáculo do crescimento começar, podem ter certeza de que estarei marchando briosamente pelo calçadão e vocês vão testemunhar o desempenho do maior caminhador deste país, desde que a coluna Prestes percorreu toda a muralha da China. Esperem sentadinhos, claro, Roma não foi feita num dia.

O calor e o frio dos outros – Martha Medeiros

Mantenho correspondência por e-mail com algumas pessoas que moram fora de Porto Alegre e fora do Brasil. Não há um único e-mail, de ida ou de volta, em que não se fale rapidamente do tempo. “Aqui está um calor dos infernos.” “Pois aqui choveu o dia inteiro e refrescou.”
Uma conversa mundana que eu achava típica de pessoas mundanas como eu, mas quando li o livro que traz as cartas que Clarice Lispector trocava com alguns de seus amigos, reparei que 90% delas também continham observações meteorológicas. Por mais filosófico ou intelectual que fosse o teor da carta, sempre havia um momento para falar do sol ou do nublado lá fora.
Fico pensando o que significa isso. Que me importa se em Paris está chovendo ou se no Rio faz 42 graus à sombra, já que não estou de passagem marcada para lá? O que importa para meus amigos forasteiros se em Porto Alegre choveu muito em 2012? Todos os dias chove ou faz sol, está frio ou quente, úmido ou seco, e a cada manhã isso nos parece um fenômeno sobrenatural e espantoso.
Creio que compartilhar as condições climáticas do lugar em que se está é um recurso de aproximação. É uma maneira de nos situar geograficamente, de preparar um cenário “visível” para quem não está nos enxergando. Lá no hemisfério norte a pessoa está encarangada, congelada, e no entanto pode nos imaginar bronzeadas e suando, vestindo uma leve blusinha de alças. E talvez seja também uma maneira de justificar nosso humor: temos nossas próprias variações de temperatura, somos pessoas nubladas ou ensolaradas, gélidas ou quentes. A meteorologia nos influencia tanto quanto a posição dos astros, e se não estamos muito pra conversa, vai ver é porque tem uma ventania lá fora que está perturbando por dentro também.
Não sei se você está lendo este texto na beira da praia ou embrulhado num cobertor. Não sei onde você está. Não sei se há um temporal se armando ou se está um daqueles dias cinzentos que provocam melancolia na gente. Se eu soubesse, talvez soubesse um pouco de você. É um mistério que a natureza não explica: nossa necessidade de localizar o outro climaticamente. Relutamos em perguntar: você está deprimido hoje? chorando muito? com vontade de cometer uma loucura? Com saudades de alguém? Em vez disso, é tão mais fácil: como é que está o tempo aí?
Aqui, agora, chove, mas acho que vai abrir.

Me conta uma história – Ana Maria Assis Ribeiro

Ela fecha a porta de casa atrás de si e pensa: agora vai passar! A entrada em casa sempre foi o alívio para todos os males. Mas o porto seguro desta vez não está funcionando. Sabe-se lá por que. Coisa esquisita! Será que finalmente a velhice ataca? Não o ficar velha: isto ela o é, desde muito. Mas não haviam aparecido até agora os efeitos desagradáveis da coisa. Mas hoje aquela sensação de tristeza e desamparo se instalou desde cedo.

Depressão senil. Sempre ouviu falar disto. É… vai ver atacou. Quando, como um autômato, foi ao caixa eletrônico tirar dinheiro nem olhou as frutas na Cobal. Tão bonitas sempre, hoje murchas; e as verduras nem verdejavam. Vai ver é isto: na depressão as cores somem substituídas por um cinza feio e sem graça. Fica ali parada sem achar o destino certo dentro de casa. Falta alguma coisa, pensa. É isto! Falta! O que é que falta ela não sabe. Mas a sensação de não estar lá “a coisa que falta”, é verdadeira, é sólida! O que poderá ser? Se falta deve ter um buraco, um vazio em algum lugar. Seus olhos percorrem cada canto, cada objeto.

Ao passar pela foto do pai se detém e se assusta. Não é uma “coisa” que falta. É o pai. Ele mesmo. Pessoa. Mas isto não tem sentido. A falta dele existe sempre e já não dói tanto, faz tempo. Ao contrário, é bom lembrar. Mas é ele. Ela tem certeza. É ele que falta hoje. Deixa-se ficar ali, agora no sofá, olhando a foto. Que estranho! No prédio ao lado uma criança chora… … e o Pai sorri. Aninha-se no colo dele e pede:

– Pai, conta uma história. Uma história daquelas que muda tudo.
– Muda? O que é que você quer mudar?
– Eu. Muda eu.
– Pra quê?
– Tô triste.
– Ah!
– Conta!
– Tristeza não é ruim. Sabe?
– É, sim. Muito. A história, pai. A história.

A história vem, perfumada pela loção de barba que conduz à calma e ao peso das pálpebras que não têm mais medo de fechar. A história que muda tudo invade o sono. Alça voo nos braços do Pai e faz um pouso suave nos lençóis de linho. Já está dormindo. Mas mesmo assim sente o beijo e o ajeitar das cobertas.

Percebe quando ele sai do quarto ao mesmo tempo permanecendo ao lado da cama na mágica de sua sempre onipresença. Ela ainda murmura: Pai… no prédio ao lado a criança parou de chorar. Da foto o Pai ainda sorri observando a samambaia. É para lá também que vai o olhar dela. Meu Deus! Como está verde! Tão verde! E a volta da cor, conduz o sono.

Gran finale – Angela Delgado

 

em Suffolk

em Suffolk

30 de abril Nunca tive senso de direção e não seria em outro país que eu o teria. Como era necessário pegar dois ônibus para ir ao Salão Internacional do Livro, a incerteza sempre baixava: é aqui, ali, esse, aquele? E se eu não memorizava os pontos de ônibus, muito menos diferenciaria rostos rosados pelo frio de motoristas e agentes de trânsito. – Bonjour, s´il vous plaît, pour aller au Palexpo, l´arrêt du bus c´est ici, monsieur ?   (Bom-dia, por favor, para se ir ao Palexpo, o ponto de ônibus é esse?) – Oui, madame !                  1 de maio – Bonjour, s´il vous plaît, ce bus-ci  m´amenera-t-il  au Palexpo ?                       ( Bom-dia, por favor, esse ônibus me levará ao Palexpo ?) – Comme hier, madame ! respondeu sorrindo. (Como ontem, senhora!) O evento do Varal do Brasil na Feira Internacional de livros em Genebra só não foi melhor porque apanhei uma gripe que me deu até febre. A organizadora, muito atenciosa e os demais escritores igualmente simpáticos, música e livros interessantes. Em Genebra, os hotéis oferecem a seus hóspedes um cartão que permite o acesso gratuito a ônibus e tramways, durante todo o período da estada. Em Paris, entre voltar ao Louvre ou ao Quai d´Orsay, optei por estar com uma amiga que não via há mais tempo do que os museus, e que recentemente se casara com um francês. Depois da curta estada parisiense, fui ao encontro de minha irmã que mora na Inglaterra. A travessia no trem-bala foi um pouco decepcionante para quem achava que vislumbraria o Canal da Mancha e, “tchum”, mergulharia. Não deu nem para vê-lo. O Euro túnel, na realidade são dois: um para ir e outro para voltar. Trata-se de cinquenta e um quilômetros construídos no subsolo, a cinquenta metros abaixo do leito do mar. Na ida, não houve nenhum aviso. Por acaso vi pela janela uma plaquinha, que passou voando: Euro Tunnel. Mas como, sem qualquer sonoro Welcome to England? Na volta, os franceses anunciam a proximidade do famoso túnel, para os ingleses agora banal. Na estação de Diss, fui resgatada por minha irmã e seu marido inglês, ambos muito queridos. Fomos para Pulham St Mary, um povoado encantador, onde fiquei oito dias, indo passear pelos arredores. Voltamos a Diss, onde estivemos em um parque e em um Pub, naturalmente; Harleston, onde jantamos em um restaurante indiano e minha irmã quase morre ao mastigar uma pimenta genuína; Norwich, a capital do condado de Norfolk; Southwold, pequena cidade no condado de Suffolk, no qual a chuva nos pegou e só não foi um sufoco, pois estávamos prevenidos; Cambridge com seus Colleges seculares e alunos famosos, como Isaac Newton, “Qui genus humanum ingenio superavit” e barcos, como gôndolas de Veneza transportando turistas pelo rio Cam, que deu origem ao nome da cidade; Abingdon, cidade no condado de Oxfordshire, à beira do Tâmisa e Oxford com  com seus quadros de Van Dyke e Caravaggio entre inúmeros outros e suas universidades e alunos igualmente célebres e centenários. Enfim, sem me restringir a Londres, percorremos grande parte do vasto , verde e florido Countryside. Isso tudo, para mim, que nunca viajara sozinha, além de um prazer, foi uma vitória pessoal e um exercício para os neurônios. Venci meus medos, tomei as inúmeras providências e tout s´est bien passé.  Aqui me lembro de uma canção do Sacha Distel, narrando o telefonema entre Madame la Marquise e seu mordomo, que lhe assegura que tudo vai muito bem, exceto que o jumento de Madame la Marquise morrera em um incêndio em seu castelo. Daí se intensificam as pequenas desgraças, sempre intercaladas com o refrão à part ça, tout va très bien, até cumular com a notícia da morte do marido de Madame la Marquise. Felizmente nada de tão grave aconteceu no gran finale de minha viagem, exceto que, ao chegar em Brasília, querendo poupar o marido de uma ida até ao aeroporto, peguei um taxi para casa, onde, após ter pago a corrida e o taxi ter-se ido, reparei, horrorizada, que a mala que trouxera não era a minha! Afonso estava mesmo predestinado a ir ao aeroporto nesse dia… Retornando com a mala extraviada, encontramos logo uma mulher que veio ao meu encontro fazendo perguntas, dizendo, esclarecendo que o marido dela estava com a minha mala, a qual havia sido devidamente protegida com o celofane rosa, como a de seu marido, motivo do quiproquó. Abracei-a pedindo mil desculpas e coisa e tal. Tenho que confessar que eu é que me apossara primeiro da mala errada, pois me lembro que fora a primeira a aparecer na esteira, o que me deixara bem contente, em minha ingenuidade do que viria pela frente. E enquanto, inocentemente, eu me dirigia para casa com uma mala contendo, supostamente, roupas masculinas em vez dos perfumes que eu comprara, minha mala rodava solitária pela esteira, o que suscitara o interesse do segundo personagem deste drama, que dela se apoderou, certamente com um faro detetivesco a perscrutar algum nome ou endereço. Sorte minha ter isso acontecido em Brasília e não em um dos países por onde eu pervagara; sorte maior eu morar relativamente perto do aeroporto e sorte com letra maiúscula o fato de que eu não “perdera tempo” no Freeshop, o que fatalmente faria com que o personagem secundário desse drama perdesse a conexão para o Rio e sua cabeça, o que talvez fizesse com que e tivesse o mesmo destino do marquês. Se algum dia eu proteger minha mala novamente, vou pedir uma cor exclusiva!

Tecendo comentários – Angela Delgado

Muita gente está elogiando “Cem anos de solidão”, mas como preferi “Vivir para contarla”, irei na contramão e contarei sobre o livro que acabei de ler e viver:
“I Miserabili”, em três volumes, de um dos meus escritores preferidos: Victor Hugo.
Li-o no original antes de 2005, época em que o reli, em sua tradução espanhola, juntamente com uma tradução portuguesa. Esta, a meu ver, malfeita, ou fui eu que estranhei o português do meu querido Portugal…. Não sei mais em que ano o li em inglês, tradução também que pula vários capítulos! Em 2013, comecei a me ensinar italiano, lenda essa mesma obra, com todas as traduções ao redor. Ontem, terminei o terceiro e último volume desse maravilhoso romance de aventura moral.
Victor Hugo disse uma vez que se não conseguisse emocionar os leitores com “Os Miseráveis” pararia de escrever! Impossível não ir às lágrimas ao final, mesmo após tê-lo lido em tantas línguas.
Seu resumo se encontra nele próprio: “O livro que o leitor tem neste momento diante dos olhos é, do princípio ao fim, no todo e nos pormenores, quaisquer que sejam as intermitências, as exceções ou defeitos, o caminhar do mal para o bem, do injusto para o justo, do falso para o verdadeiro, da noite para o dia, do apetite para a consciência, da podridão para a vida, da bestialidade para o dever, do inferno para o céu, do nada para Deus. Ponto de partida: a matéria; ponto de chegada: a alma. No começo, hidra; no fim, anjo.”
Para quem quer aprender italiano, como eu, eis a tradução: “Il libro che il lettore ha sotto gli occhi in questo momento, è da cima a fondo, nel suo insieme e nei particolari, qualunque sia le intermittenze, le eccezioni o le manchevolezze, il cammino dal male al bene, dall´ingiusto al giusto, dal falso al vero, dalla notte al giorno, dall´appettito alla conscienza, dal putridume alla vita, dalla bestialità al dovere, dall´inferno al cielo, dal nulla a Dio. Punto di partenza: la materia, punto d´arrivo: l´anima. Al principio l´idra, alla fine l´angelo.”
Outras palavras imperdíveis:
“Se a liberdade é o cume, a igualdade é a base. A Igualdade, cidadãos, não é o nivelamento de toda a vegetação, é, civilmente, o mesmo ingresso a todas as aptidões e, religiosamente, todas as consciências com o mesmo direito. A Igualdade tem um órgão: a instrução gratuita e obrigatória. O direito ao alfabeto, é por onde se deve começar. A escola primária imposta a todos, a escola secundária oferecida a todos.”
“Si la liberté est le sommet, l´égalité est la base. L´égalité, citoyens, ce n´est pas toute la végétation à niveau, une société de grands brins d´herbes et de petits chênes; c´est, civilement, toutes les aptitudes ayant la même ouverture; religieusement, toutes les consciences ayant le même droit.
L´Égalité a un organe : l´instruction gratuite et obligatoire. Le droit à l´alphabet,
c´est par là qu´il faut commencer. L´école primaire imposée à tous, l´ecole secondaire offerte a tous.»
Repararam que a tradução portuguesa ignorou a frase, “uma sociedade de relvas crescidas e carvalhos pequenos”,  que seria a consequência de um nivelamento, sem levar em conta as naturais diferenças?
Há muito mais. Só comentei esses dois trechinhos do terceiro volume, para não cansá-los.
Quem não leu “Os Miseráveis”, não sabe o que está perdendo.
Boa Páscoa a todos!

Frases de Clarice Lispector (Obrigada, Geo, pelo empréstimo do livro!)

“… Cercas delimitando cantos que não seriam cantos se não houvesse as cercas arbitrárias.” (Já vejo por outro ângulo: Graças às cercas, a infinitude cansativa se torna um cantinho aconchegante.)

“Com uma sabedoria instintiva, Ermelinda não demonstrou que notara o seu passo para ela, assim como não se dá um grito de alegria quando uma criança começa a andar, para que esta não pare assustada por meses.”

“Se uma pessoa fizesse apenas o que entende, jamais avançaria um passo.”

“Um pouco vivida, sabia que na hora as coisas pareciam certas e depois não pareciam mais.”

“Quando tomo um calmante, não ouço meu grito, sei que estou gritando, mas não ouço.”

“De repente pareceu a Martin que ele andara em caminhos superpostos. E que sua verdadeira e invisível jornada se fizera na realidade embaixo do caminho que ele julgara palmilhar. E que a verdadeira jornada estava agora saindo subitamente à luz como de um túnel.”

“… aquela iminência para a qual tudo pareceu debruçado.”

“- E a senhora, por que veio para cá?
– Que pergunta estúpida. É como se eu lhe perguntasse: por que é que o senhor vive!
– Porque tenho certo instante em vista, disse ele.”

“Deus sabe que há pessoas que não podem viver com a felicidade que há dentro delas, e então Ele lhes dá uma superfície de que viver, e lhes dá uma tristeza.”

“É preciso ter técnica para pedir. Não é só dizer “me dá” e acabou-se! É preciso pedir disfarçando. Se a senhora precisa de um par de sapatos, o mais aconselhável seria dizer aos pouquinhos: meus sapatos estão velhos. Compreende? Seu marido um belo dia acordaria de manhã e, sem ao menos saber por que, diria assim: Vitória, meu amor, vou lhe dar um par de sapatos! Receber pedidos assusta muito as pessoas, que, no entanto, às vezes estão doidas para dar, entendeu?”

“… consigo levava a impressão que hoje, agora, neste momento, enfim se revelava. Como se tivesse guardado tanto tempo que o acontecimento enfim exalasse um maduro odor de fruto, e o vinho que fora novo tinha ganho espessura e essa qualidade que ilumina uma taça.”

“A senhora olhou aquele homem, aquele homem que era cruamente o dia de hoje, e como tocar diretamente no dia de hoje, nós que somos hoje?
E tudo é teu se tiveres coragem de olhar de frente, mas de súbito, naquele homem ali, o tempo viera de tão longe para se esborrachar em: hoje! Urgente instante de agora.
Por erro de vida – e bastava um erro, nessa coisa frágil que é a direção, para que a pessoa não chegue – por um erro de vida ela jamais usara o silencioso pedido que usamos que faz com que os outros nos amem.”

“Sobressaltou-se de novo, ainda não firme naquelas pernas que lhe estavam sendo dadas. E como um cego que tivesse recobrado a visão e não reconhecesse com os olhos aquilo que mãos sensíveis sabiam de cor, ela então fechou um instante as pálpebras, tentando recuperar o conhecimento íntegro anterior; abriu-as de novo e procurou fazer das duas imagens uma só.”

“Preciso me exagerar. Senão que é que faço de mim pequena?”

Um pouquinho de Humberto Maturana

Se cuenta la historia de una isla en Alguna Parte, donde los habitantes anhelaban intensamente ir a otro lugar y fundar un mundo más sano y digno. El problema, sin embargo, era que el arte y la ciencia de nadar y navegar nunca habían sido desarrollados (o quizás habían sido perdidos hacia mucho). Por esto había habitantes que simplemente se negaban siquiera a pensar en las alternativas a la vida de la isla, mientras otros hacían algunos intentos de buscar soluciones a sus problemas, sin preocuparse de recuperar para la isla el conocimiento de cruzar las aguas. De vez en cuando, algunos isleños reinventaban el arte de nadar y navegar. También de vez en cuando, llegaba a ellos algún estudiante, y se producía un diálogo como el que sigue:
– Quiero aprender a nadar.
– ¿Que arreglos quieres hacer para conseguirlo?
– Ninguno. Sólo deseo llevar conmigo mi tonelada de repollo.
– ¿Qué repollo?
– La comida que necesitaré al otro lado o donde quiera que esté.
– Pero si hay otras comidas al otro lado.
– No sé qué quieres decir. No estoy seguro. Tengo que llevar mi repollo.
– Pero así no podrás nadar, para empezar, con una tonelada de repollo.
– Entonces no puedo aprender. Tú lo llamas una carga. Yo lo llamo mi nutrición esencial.
– ¿Supongamos, como una alegoría, que no decimos repollos sino ideas adquiridas, o presuposiciones o certidumbres?
– Mmmm… Voy a llevar mis repollos donde alguien que entienda mis necesidades.